Posted by [The]Lirium

23/03/2072

Blecaute. A casa vazia ecoa o som do silencio. Na sala, apenas uma janela fechada, um sofá velho e o cheiro do nada. Não há prateleiras nem armários, pois não existem mais livros. Só o silêncio permanece e me faz querer imaginar como era a vida antes disso. Mas já não consigo. Certas coisas perderam-se a respeito do que eu, um dia, imaginara. Os dias tornaram-se ainda mais afanosos... Monocromáticos. E pioram a cada alvorada.

Lembro de ouvir histórias, contadas pela doce voz de minha avó. Contos que rasgavam os céus e os deixavam escarlate – sangrando. Histórias de vilas pequenas escondidas nos arredores de bosques, sendo engolidas por gigantes de pedra. Tento imaginar como eram as árvores.

Os gigantes de pedra, ainda rasgam os céus, e eu os vejo sempre quando deliberadamente abro a janela.

Eis, o escuro.

23/04/2072

Demência. O grande mal da humanidade.

Tapumes. Um corredor. As escadarias que ascendem ao sótão. Três quadros borrados com rostos de crianças sorridentes - Que grande mentira.

Minha avó, talvez um dia tenha me contado que as crianças antes de seu tempo sorriam sorrisos verdadeiros. Ao passar dos anos foram tornando-se cada vez mais escassos. Mas, indefinidamente, eram felizes.

Hoje, quase crianças não existem. As pessoas cansaram de fazer com que os filhos brotem das mulheres. Acham tão desnecessário quanto comprar marca-páginas.

As pessoas se cansaram de falar.

O caos habita a todos. Cansar-se de contar, é dar veredicto ao fim do conhecimento. Mas, penso, será que o que repassamos às nossas crianças é, de fato, conhecimento?

Fecham-se as cortinas. Ninguém aplaude.

23/05/2072

Desordem. Animais matando animais. Humanos.

Do sótão, consigo fitar somente a marulha. Este é o nome ao qual denominamos os gigantescos muros que separam as nossas casas. Evitando contato aos que não são da mesma família. Talvez um dia eu tenha ouvido sobre muros baixos, casas vizinhas e pessoas conversando sem medo. Não consigo realmente imaginar.

Escadas.

Há alguns anos minha irmã e eu, criamos uma escadaria que ascendia do sótão às telhas. De lá, podia ver até a lagoa de águas negras, localizada no centro do anfiteatro detonado por militares. Ela, minha irmã, conseguira um binóculo velho, certa manhã, quando o toque de retirada foi soado pela última vez. Embora os olhos do governo não permitam, ela pagou com três páginas de um livro que minha avó havia escondido quando aquele dia chegara... O dia da queima.

Cheiro de letras. Dragões voando pela fumaça das chamas. Princesas correndo com seus vestidos longos - perdendo sapatos pela rua, líderes de exércitos de guerra sendo açoitados por línguas de fogo. Toda a imaginação e riqueza das idéias e palavras – queimadas. Eu não estava lá, é claro. Mas conto-lhe de acordo com o que minha avó talvez me contara um dia.

23/06/2072

A divina comédia, Dante Alighieri. 1321.

Não sei ao certo o que significa, mas imagino que minha avó tenha sabido. Uma peça de teatro, algum ator famoso de quando as pessoas ainda endeusavam pessoas. Talvez um livro. O fato é que isto está escrito sob um tapete velho, incrustado na madeira do assoalho com letras pequeninas. Não sei se meus olhos falham.

Talvez sejam eles pregando-me uma peça outra vez. Talvez.

Uso do binóculo para conseguir distinguir as letras. De fato as páginas de um livro chamado Frankenstein, não foram de todo perdidas na troca por este aparelho que deixa todas as coisas maiores quando coloco os olhos na lente. Afinal, eu já havia lido aquelas três páginas centenas de vezes. Tantas, que as palavras foram talhadas na minha mente. Seria a primeira coisa que eu contaria ao meu filho. Se eu o tivesse.

No fim da última página, em letras quase sumidas, dizia talvez o seguinte:

“Eu era mais calmo e filosófico que minha companheira; meu temperamento, no entanto, não era tão flexível... Eu me deliciava na investigação dos fatos relacionados ao mundo real; ela se ocupava seguindo as criações aéreas dos poetas. O mundo era, para mim, um segredo, que eu desejava desvendar; para ela era um vácuo, que procurava povoar com seus próprios devaneios imaginários"

Primoroso.

23/07/2072

Anil.

Um dia alguém bradou aos outros que os livros deveriam ser queimados. Os tolos, o fizeram sem pensar. Tudo tornou-se escarlate e as pessoas correram para dentro de suas casas, optando por serem tratadas como porcos em pleno abate. Toc, toc.

Quando alguém bate na porta, desço correndo. Quase caio. São os homens do governo, vestidos com máscaras brancas para que ninguém consiga ver suas fuças imundas. Mas são eles que nos trazem alimento e, por isso, nunca tive coragem de pular em seus pescoços e fugir desta cidade. Talvez eu nem mesmo conseguisse virar a esquina. Tudo aqui é vigiado, desde que eles viram minha irmã trocar as páginas de Frankenstein com aquele velho barbudo, por um binóculo.

Ela foi levada para o anfiteatro.

Aqueles que tentam infringir suas tolas regras são queimados. Tolos. Tola. Ser queimada como foram os livros e seus personagens sempre foi o que ela desejou. Pergunto-me quem, em sã consciência, desejaria arder na fogueira.

Línguas de fogo queimando os fios da roupa, queimando a pele branca. Fogo que queima idéia. Língua que lambe imaginação. Fumaça de desolação.

Singrando em mares revoltos.

Uma nação perdida, idéias esquecidas, desordem, caos e o fim.

É o fim.

23/08/2072

Assisto do teto as estrelas no céu. Minha avó dizia que não se podia contá-las, pois de tantas, nos perderíamos na contagem ou dormiríamos enquanto tentávamos. Eu deveria estar feliz.

Posso contar seiscentas estrelas no céu grafite. Foi até este número que consegui contar, antes que minha avó morresse e minha irmã ardesse. Fico surpresa por ainda lembrar da seqüência.

Olho com meus binóculos e um barulho me faz cair pela escadaria. Num susto, subo novamente pelos degraus e tento assistir o que está acontecendo lá fora. Não distingo o som do que está sendo falado, não consigo entender a voz dos homens de máscara saindo de uma casa em chamas e se aproximando da minha com coquetéis molotov presos em carros de uma roda.

Nós deveríamos imaginar.

As pessoas se cansaram de contar. As poucas crianças que existem já não sorriem. E há muito tempo tudo fora destruído com a queima dos livros. Nada os substituiu. Nem mesmo os computadores tão utilizados há muito tempo atrás.

Tudo voltou a ser como no início do mundo.

Pessoas que parecem animais e agindo como os mesmos. Exímios livros sendo jogados no meio da rua e sendo lambidos por chamas terríveis.

Animais matando animais. Acontecerá novamente.

Meu binóculo cai ao chão. Não quero assistir a isso. Fecho os olhos e tento imaginar um mundo diferente. Pessoas sensatas, inteligentes. Esta não é a destruição de uma nação, pessoas se refazem – É a destruição do conhecimento.

Quanto tempo mais ele durará? É o que minha avó sempre dizia, nós estamos perdendo o conhecimento ao longo do tempo, e não ganhando.

A própria língua um dia, morrerá. Mas não a de fogo.

A da palavra.

Das entranhas de um livro não acabado. [2]  

Posted by [The]Lirium

"[...] - Nós temos que fazer algo por ela.

O homem, cansado de esperar e irritado o bastante por ser ignorado, desceu do cavalo e sacou uma espada prateada. Aproximou-se da mulher que entendera a mensagem e agora sorria com o pouco de força que ainda restara no corpo, e com a lâmina em seu pescoço, cortou-lhe a garganta."

Das entranhas de um livro não acabado.  

Posted by [The]Lirium


"[...] Naquela manhã distante, na quietude do mundo, quando havia menos barulho e mais paz, e quando a menina estava com uma das mãos sobre a cabeça machucada e a outra lhe cobrindo a boca, num súbito reflexo de susto e surto, ele apareceu.
Se vocês pudessem ao menos vê-lo, parado à porta, como se estivesse adormecido, certamente entenderiam e poderiam imaginar como a atmosfera ficou densa e o tempo pareceu andar em passos de tartaruga. E se ao menos vocês tivessem ouvido apenas um oitavo do que eu já ouvi falar dele, assim como de um Mago de outra história! Histórias de aventuras brotavam por todo lado, e certamente, outra estaria para surgir. Quisesse ou não.
Tudo o que a menina viu, naquela manhã, foi um rapaz."

太鼓  

Posted by [The]Lirium

Su-Ton-Su-Ton-Do-Don-Do-DON!


Ainda lembro-me quando decidimos, acovardados.

Uma viagem curta, até um lugar utópico onde alguns meditavam, e outros lutavam. Não havia flores, os tempos não eram bons. Tudo era deveras novo, mas com aparência antiga.

Aos poucos, começamos. Cantarolando aquelas palavras que ainda não eram conhecidas por nós e faziam nossa língua enrolar de um jeito estranho. Não sabíamos seu significado, nem mesmo sentíamos a freqüência das batidas ressonando pelo salão – fazendo os vidros vibrarem. Eu não sentia.

San-To-Ko-Do-KOI!

Um, dois, três dias. Dalí a pouco somavam-se semanas. Uma vez a cada. Mas aqueles sete dias que antigamente relutavam em passar, agora corriam sem espera. Começamos a ansiar pelo Doyōbi, pois já vibrávamos quando ouvíamos o som dos tambores. Sentíamos aquela freqüência inumana que vinha do nosso âmago. Urrávamos através dos nossos braços velozes, ritmados. Já estávamos habituados. Nossos ouvidos eram acariciados por aquela melodia que cochichava de forma compassada através da nossa carne. Da nossa alma.

Sentíamos e cantávamos, agora sabendo o que tudo aquilo significava.

Se esse sentimento voraz e intrépido é o que os poetas chamam de loucura, o batizo, agora, de simples e cândido: Amor.

O mais puro e intenso... Como as batidas das ondas do mar.


Yō-San!

Sala 67  

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Despertar pela manhã ainda oculta. Bocejar uma, ou duas vezes. Ligar a ducha e esperar que ela purifique aquela alma desbotada. Vestir-se com uma camiseta gasta de uma banda desconhecida, e calçar o velho tênis escarlate. Os cadarços, aos tornozelos.

O café que já virou chá. E a porta de madeira. Através da manhã já desperta, mas glacial.

Atravessar as ruas, calçadas, deparar-se com as mesmas pessoas, embora não lhe saiba os nomes. Ver ao longe aquele grande castelo contemporâneo, e logo sentir que a distância já está se encurtando. As escadarias: Subi-las. A ânsia é visível: Engula-a.

O Elevador. Embarcar ao lado de uma velha pomposa com seus óculos dourados Dior da década de 50, junto com uma jovem com atributos visíveis e batom rubro que contrasta nada perfeitamente com seus cabelos amarelos, e um homem ocupado demais para perceber sua presença, com seu jornal defronte a face.

A porta fecha-se, e sobe.

Segundo andar. Terceiro, uma parada. A velha sai, fazendo um barulho nervoso com seus tamancos de couro branco. As portas movem-se demoradamente.

Quarto andar e outra parada. O homem com o jornal ainda tampando-lhe a visão, sai apressado pela porta e esbarra em um jovem que ocupa seu lugar no elevador. Este olha para a loura, mas logo disfarça a entreter-se com as alças da capa de um violão.

Quinto andar. Sexto. As portas que agora abrem são para o rapaz, e para você. Os dois saem, sem olhar para a loura que passava outra camada de seu batom vermelho a preparar-se para a próxima parada.

Atravessar uma porta de vidro talhada com uma clave de sol. Nunca reparara antes no quanto uma clave de sol pode ser tão insignificantemente frágil?

Sentar-se em uma poltrona marrom, e logo ouvir um estranho barulho ao chocar-se contra suas pernas. Abaixar a cabeça e aguardar, ansiosamente.

O rapaz tira de seus bolsos uma chave, e apressa-se em abrir a primeira porta do pequeno corredor. Ele olha para você antes de entrar, mas não recebe outro olhar. Alguns minutos depois de tê-la fechado, um belo som, austero, tocado pelas cordas de uma guitarra, soa pelo sexto andar. Mas logo uma pessoa de você se aproxima, e diz que pode usar a sala 67. Já a conhece, a sala, de longa data, e por isso sorri ao levantar-se. Com oito passos.

Fechar a porta.

Aquele piano negro está a sua frente, ele tem essa mania estranha de deixar-te receoso... A imagem dele soa como uma proposta indecente de um duelo. E você, curiosamente, sempre a aceita.

Sacar o caderno de partituras, sentar-se defronte ao teclado, e colocar-se a tocar.

Suas costas eretas. As pernas que se contraem ao tocar o pedal. Seus dedos dançam como nunca. E você sente seu coração palpitar rapidamente... Fecha os olhos. Vibra. Incita. Recita. E inspira intensamente.

Sua última melodia.

Agora você está em pé, abrindo aquela grande janela que sempre te deu a visão completa daquela cidade. Sorri gentilmente para as nuvens, antes de encarar amargamente as pequenas pessoas que sempre se moveram com a rapidez de um antílope. Corram! Corram! Como correm! Mas você nunca ligou para isso. Não é?Não corra!

E como um pássaro que não possui asas...

Jogar-se contra o nada.

A cantarolar uma última melodia.



Despertar pela manhã ainda oculta. Bocejar uma, ou duas vezes (...)

[17]  

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Estou com medo.

L.T.

Um conto medieval, parte Três  

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"...Aqueles olhos brilharam uma única vez ao fitar ao longe a Floresta de Esmeraldas, mostrando em um único relance todo o poder daquele espírito, agora ferido como nunca. Nunca havia se sentido tão confuso, sem saber agir, sem saber pensar. Ela estava ferida... Mas por quê? Por que não esperou sua ajuda e não deu a ele sequer um segundo para o auxílio? ... Toda aquela força se desfez, não pôde dar um passo sem que todos os temores que ele tão habilmente afastara durante toda a vida o assaltassem de uma só vez. Por instantes ele apenas observou o embrulho em suas mãos, manchado daquele liquido tão puro. Aquelas manchas leves no chão, que pesavam seu coração como nada antes o fizera... Seus olhos se encheram então da antiga chama, uma força que o consumiria em breve, mas que agora serviria ao propósito de seu coração, pois essa era sua natureza: Agir.

Sem que ninguém empurrasse, a porta a sua frente se abriu e seu corpo deslizou pelo ar. Um movimento impossível de acompanhar... “Tenho que descobrir... Tenho de saber o porquê!" Com o pacote apertado em seu peito ele saiu, noite a fora."

O frio intrépido acompanhado da densa neblina circundava as árvores da Floresta, que banhadas em gelo puro tilintavam a cada floco de neve que ousava cair sobre sua superfície, ameaçando estilhaçar-se a qualquer segundo.

As botas da jovem amassavam a neve que se dissipava com qualquer toque, formando buracos enormes que sugavam suas pernas até a altura dos joelhos, atrasando-a em sua fuga. Ela chorava baixinho, execrando-se por dentro, pois queria ter permanecido a cantar histórias com seu alaúde e pífaro, sobre aventuras de dragões a deixar em chama aldeias e cidadelas. Ela desejava ser ouvida, para que as suas histórias jamais morressem.

Quando a margem de um rio cristalino brotou diante da escuridão gelada, a jovem adentrou-o, buscando pelo pequeno barco que ali deixara. Tomou em mãos seu remo e pôs-se a golpear a superfície da água, distanciando-se daquela cidade.

“ESPERA-ME!” Ecoou.

A jovem virou-se desesperadamente para saber quem a chamara. Das sombras surgiu o mesmo homem a quem presenteara.

“OH BARDA! É O PARAÍSO QUE PROCURAS? ESCUTA-ME... DEIXA-ME AJUDÁ-LA. DEIXA-ME SANAR A SUA DOR... A TUA HORA NÃO CHEGOU VISTO QUE NOSSOS DEUSES PERMANECEM CALADOS! ESPERA-ME! Espera-me...”

“Perdoa-me...” Sussurrou em resposta, em um tom inaudível banhando-se em lágrimas. A moça tomou em mãos o remo e arremessou-o na água. Tornando seu próprio retorno impossível.

“Há algo que você não sabe, Oh Viajante...

A minha estadia nesta Terra já excedeu seu limite.

Os dias que ainda vivo foram contados pelo Deus Maior.

Não pude andar ao teu lado nesta etapa.

Eu sei... Eu falhei.

Mas a sua jornada ainda continua.

Cante aos homens a minha história.

Torna-me imortal.

E assim um dia, encontrar-nos-emos no Paraíso

E cantaremos juntos, a história do Mundo...”

E coberto pela nevoa, o barco desapareceu. Mas ainda era possível ouvir notas de uma melodia conhecida... Cantava a barda, o seu ultimo suspiro na Terra.

[Continua]

Larissa Tonin - [The]Lirium e Daniel - Iluvatar